Em serviço inédito no Vale do Sinos e Encosta da Serra, Universidade acumula mais de 120 pacientes, que têm acesso a acolhimento psiquiátrico, ginecológico e endocrinológico
Lucca Mateo, paciente do projeto TRIS, em consulta com o professor Ricardo Arantes
Quando se olha no espelho, aos 25 anos, Gabriel finalmente vê a pessoa que sempre quis ser. Foi um longo período convivendo com a incongruência de gênero – condição em que o indivíduo passa por um conflito interno entre o gênero físico e o gênero com o qual se identifica – para que, já adulto, se reconhecesse como homem transgênero. A preferência por brincadeiras consideradas “de menino” na infância e por roupas fora do padrão esperado na adolescência o fizeram, inclusive, se reconhecer como mulher lésbica em dado momento. “Com o passar dos anos vi que ainda não me sentia completo e bem comigo mesmo”, lembra. Foi só quando conheceu uma mulher trans e passou a pesquisar sobre o tema que entendeu a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero.
Hoje, Gabriel pode afirmar que pertence ao grupo de cerca de 2% da população brasileira adulta que, de acordo com a pesquisa Proportion of people identified as transgender and non-binary gender in Brazil, publicada em 2021 na revista científica Nature, se identifica como pessoa transgênero ou não binária. São quase três milhões de indivíduos em um país que, pelo 14º ano consecutivo, registrou o maior número de assassinatos de pessoas trans no mundo, segundo relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Neste cenário, visando oferecer um serviço de orientação e acolhimento integral à pessoa transgênero, os professores Eduardo Camargo (endocrinologista) e Ricardo Lugon Arantes (psiquiatra), do curso de Medicina da Feevale, em parceria com Instituto de Ciências da Saúde (ICS), criaram o projeto TRIS - Transgênero, Integralidade e Saúde. O serviço, realizado por ambos os professores e estudantes de Medicina, presta atendimentos a pacientes trans de todas as idades, nas áreas de psiquiatria, ginecologia e endocrinologia - para terapia de afirmação de gênero e tratamento hormonal.
Pioneirismo na região
O projeto TRIS tem como público-alvo pessoas que buscam uma afirmação de gênero, ou seja, aquelas que possuem um gênero de nascimento ao qual não estão adequadas. “São pessoas que querem uma adequação para um gênero oposto ou, ainda, um gênero neutro. Fazemos um acompanhamento e uma avaliação e, para os casos que têm indicação, administramos a terapia hormonal cruzada, seguindo todos os preceitos de embasamento científico e de legislação brasileira”, explica Camargo, informando que, no caso de homem transgênero, é utilizada a testosterona; no caso de mulher transgênero, usa-se estradiol, estrogênio e um anti-hormônio masculino.
Para o professor, o que torna o projeto tão significativo para os mais de 120 pacientes atendidos é o fato de que não existe, nas regiões do Vale do Sinos e Encosta da Serra, um serviço de referência em atendimento a pessoas trans. “Na nossa região, somos pioneiros nesse ambulatório, que tem mais uma particularidade: é um dos únicos que conta com participação de estudantes de Medicina, prestando atendimentos e conhecendo as demandas dessa população, que são bem importantes”, destaca, frisando que um atendimento técnico e humanizado é essencial, principalmente no caso de pessoas que, muitas vezes, não têm acesso a um serviço de saúde especializado e buscam a automedicação.
Jornada de confiança e autoaceitação
Foi em busca da hormonioterapia que Lucca Mateo, de 20 anos, marcou a primeira consulta no Centro Integrado de Especialidades em Saúde (Cies) da Feevale, onde acontecem os atendimentos do projeto TRIS. Em situação similar à de Gabriel, Lucca aponta que foi por sua maneira de se vestir – não aprovada pela família – que começou a pesquisar sobre as bandeiras da sociedade LGBTQIAPN+. “Eu pesquisei todas e me identifiquei muito com a bandeira trans”, afirma.
Por outra perspectiva, somando mais atendimentos e já em meio ao processo de terapia hormonal, Gabriel declara que passou a sentir segurança em relação ao seu gênero graças aos atendimentos que recebeu dos estudantes e professores. “Foi através do projeto que pude me sentir quem eu sou e quem eu sempre fui”, diz. A outros homens e mulheres trans que passam pelo mesmo conflito interno em relação ao gênero, ele tem dois conselhos: conversar com pessoas que vão escutar sem julgamentos e, principalmente, não desistir. “Só nós sabemos o que sentimos e o que passamos todos os dias. A luta é grande, mas não desista, porque a cada dia você está mais perto da vitória”, assegura. Para Lucca, a autoaceitação é o mais importante. “A melhor coisa que tem é se aceitar. Isso faz um bem, traz um alívio”, declara, segurando, nas mãos, o encaminhamento para dar início a mais uma etapa da jornada em busca da afirmação de seu gênero – a terapia hormonal.
Como buscar o atendimento?
O projeto TRIS atende com horário marcado, todas as segundas-feiras, das 8h às 12h. São aceitos encaminhamentos, via Sistema Único de Saúde (SUS) e secretarias de Saúde de todos os municípios da região. O serviço, desde o acolhimento até a administração da terapia hormonal (se for o caso) não gera custos para o paciente. Mais informações sobre o atendimento podem ser solicitadas diretamente pelo e-mail cies@feevale.br.